Mateus, Ryan e Welison - Os meninos do Rio
Sérgio Vaz
A vida de quem possui uma trajetória periférica é preenchida por inúmeros desafios. Um deles, às vezes o mais explícito, é a violência. As comunidades do Rio de Janeiro (RJ) sofrem diariamente com tiroteios, balas perdidas, agressão policial e outras formas escancaradas de violência cotidiana. Para Mateus Idalino (23), morador do Complexo do Alemão, o maior conjunto de comunidades periféricas da cidade do Rio, a violência reside na sua porta quando, ao sair de casa, precisa saber se o ambiente externo é seguro, se não houve troca de tiros ou se a polícia pretende invadir a comunidade.
Welison Gregório (23), outro jovem morador do Complexo, relata a mesma experiência e destaca também outro desafio corriqueiro: o tráfico de drogas.
Todo dia, ao acordar, precisa escolher entre sair da comunidade para trabalhar, estudar e realizar outras atividades ou aceitar o convite dos traficantes, que se reúnem em frente da sua casa, para fazer parte da facção. Ambas as experiências são intensificadas também na fala do Ryan Conceição (21) que comenta a sua decepção ao lembrar que já perdeu muitas oportunidades porque não podia descer do Complexo devido a uma operação policial ou alguma outra questão que envolvesse a violência e o tráfico de drogas, por exemplo. “Não tem como descer o morro quando a polícia quer subir, é impossível”, comenta.
O judô é uma arte marcial de origem japonesa. Chega no Brasil em meados da década de 20, ainda no século passado. Em 1971, na cidade de Recife (PE) é fundada a Associação Nagai, pelo Sensei Tadao Nagai. É apenas em 2012 que o projeto chega na cidade do Rio de Janeiro, com o foco de impactar as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O projeto começou a ser liderado pela ex-atleta campeã brasileira de judô Silvana Nagai, filha de Tadao. “Ao concluir o meu mestrado, senti muita necessidade de sair de onde estava e impactar vidas pelo judô, porque a minha vida foi impactada por ele”, relata Silvana. Dessa forma, funda um novo espaço para a prática do esporte em uma das entradas do Complexo do Alemão.
Mateus lembra-se muito bem de como iniciou sua vida com o judô: queria ser maneiro. “Eu via o pessoal indo para o judô, com os quimonos e queria fazer parte, era legal”, comenta. Ainda criança, quase entrando na adolescência, viu nesse esporte uma maneira de ser descolado, além de entender que era uma boa atividade para se passar o tempo. Vindo de uma família com a ausência da figura paterna, foi no judô que Mateus entendeu que poderia ser diferente dos demais meninos a sua volta, principalmente do seu irmão que era uma figura admirada por ele, mas que possuía problemas relacionado ao tráfico de drogas, e, além dessa compreensão, Mateus começou a se entender como exemplo para as crianças mais novas que foram entrando no judô após ele. Segundo o sensei, a prática do esporte não é um mero hobby, mas um significado de vida. É na luta que ele encontrou amizade, rede de proteção e oportunidades, necessidades que jovens de trajetória periférica possuem e dificilmente têm acesso com qualidade.
Não diferente, o Welison encontrou no judô um dos seus melhores amigos, o Mateus. Lembra que começou a lutar ainda novo, também entrando na adolescência. Sua iniciação se deu por causa da sua avó, com quem morava, pois, ao não permitir que o neto ficasse na rua brincando, o pôs no judô para que ocupasse o tempo. Welison afirma que sua infância poderia ter sido mais proveitosa no sentido de brincar, mas o esporte o ajudou a superar os desafios e a trazer esse aspecto físico que não pôde ser aproveitado quando pequeno. Logo se apaixonou pela luta e se envolveu cada vez mais, e também oportunidades lhe foram concedidas por esse universo da arte marcial.
Os dois jovens hoje atuam como professores de judô, ou senseis na classificação técnica. Além disso, são estudantes de graduação em educação física e conseguiram suas bolsas também por causa do esporte. Estudaram juntos no ensino médio em uma escola da elite carioca na zona sul da cidade, por meio de uma bolsa-atleta. Ao lembrarem desse momento, destacam a alegria de ter um ensino de qualidade antes da faculdade e as dificuldades que tiveram para se manterem nesse período. O êxodo geográfico-social que tiveram de praticar durante três anos, saindo do Complexo e indo para a zona sul, uma das regiões mais ricas da cidade, foi um choque de realidade imenso para eles. Ali entenderam as desigualdades que preenchem a sociedade brasileira. Durante o período escolar, batalharam para não serem reprovados porque tinham dificuldades de estudar devido ao cansaço que o deslocamento por meio do transporte público gerava. Mesmo sendo destaques na escola por serem atletas, eram marcados como diferentes por serem meninos negros da periferia. Ainda assim, com muitos desafios, ambos conseguiram se formar e levaram essa experiência como única na vida, pois intensificou em seus corações o desejo da mudança social e o agradecimento por conseguirem desenvolver habilidades intelectuais importantes ao dia a dia.
Ryan, antes do judô, era músico, tocador de violino. Entrou na música para ocupar o tempo livre, uma espécie de contraturno escolar. Porém, ao ver que colegas estavam indo praticar o judô, decidiu arriscar sua vida na arte marcial. Em poucos meses, o esporte já conquistara o seu coração e Ryan se viu dividido, pois tinha que escolher um caminho para se dedicar: a música ou o judô. Acabou escolhendo o esporte, mas sem abandonar de vez a música, aliás, ainda sabe tocar violino e um dos seus gêneros musicais favoritos é a música clássica. Diferente de Mateus e Welison, que escolheram a educação ao se tornarem senseis de judô, Ryan foi para o caminho do atletismo. Hoje, já acumulou inúmeras medalhas de campeonatos e viajou várias vezes para outros estados do Brasil e até mesmo para fora do país, com o propósito de competir. Ao pensar nisso, Ryan comenta: “se não fosse pelo judô eu não teria conseguido nada disso. Como eu, vindo da quebrada, iria conseguir viajar para outro país antes dos 20 anos?”
Os três esportistas relatam as dificuldades de se morar no Complexo, mas nenhum deles vê o território onde nasceram e cresceram como algo ruim. O judô fez com que eles desenvolvessem um sentimento de orgulho de suas origens e a vontade de querer transformar a terra que os abriga há tanto tempo. A partir do contato com o mundo externo ao Complexo, eles viram a potencialidade das comunidades periféricas. Atualmente, Mateus e Welison continuam a construção do legado iniciado pela sensei Silvana e Ryan compete para entrar na seleção brasileira para as olimpíadas de 2024. Se conseguir, será o atleta mais jovem de toda seleção. O que os faz acordar todos os dias e escolher ir à luta por uma sociedade mais justa e igualitária, em vez de entrar para o tráfico e corroborar a violência presente nas comunidades, não é somente o esporte, mas toda a compreensão de vida e conhecimento de mundo que o judô proporcionou a eles. Não somente uma ampliação sobre suas identidades se formou no esporte, como também uma família foi gerada. Mateus, Welison e Ryan não são apenas amigos, são irmãos, companheiros de luta e sobreviventes de uma realidade brutal que permanece nas regiões periféricas do Rio de Janeiro.
O trabalho da Associação Nagai não se resume a ensinar a prática de judô para crianças e adolescentes, mas de fazer indivíduos refletirem sobre a sua existência a partir do esporte. A vivência e experiência desses três jovens inspiram dezenas de meninos e meninas do Rio de Janeiro, ensinando que é possível vencer as barreiras e enfrentar os desafios. Por meio das práticas esportivas, eles mudam cotidianamente a realidade do Complexo e da cidade. Afinal de contas, segundo as próprias palavras deles, o trabalho não é ensinar o esporte, mas a vida.
- Produzido por Escola de Notícias
- Texto: Lucas Gregório
- Fotos: Maykon Lima e Pedro Medeiros
- Produzido por Escola de Notícias
- Direção: Camila Vaz
- Direção de fotografia e câmera: Pedro Paquino
- Assistente de fotografia: Maykon Lima
- Drone: Pedro Paquino
- Som: Maykon Lima
- Produção: Lucas Gregório Viana
- Produção executiva: Camila Vaz
- Edição e finalização: Pedro Paquino
- Colorização: Gabriel Felício
- Arte e Motion: Camila Ribeiro e Davi Araújo