Anailde recorda-se com ternura dos dias em que suplicava aos pais para deixá-la ir às grutas, onde ecoavam os cânticos do Reis, o mestre da música do quilombo. Após muita insistência,  seu desejo foi atendido. Seus pais, enfim, permitiram que ela se juntasse às outras crianças, para ouvir as melodias que não falavam apenas de um homem, mas de um povo inteiro, repleto de histórias e memórias que se entrelaçavam como raízes. Naquela noite mágica, ao chegar ao local, o luar banhava suavemente as pedras, e um círculo de pessoas se formava ao redor do cantor. O samba, pulsante e vivo, preenchia o ar, e ali,   no coração de sua terra, Anailde se encantou profundamente. A alegria de sua gente, a dança sob o céu aberto, pareciam pintar o quilombo com uma beleza que nenhum olhar poderia captar por completo. Para ela, nada era mais belo do que ver sua gente feliz, dançando em sintonia com a própria essência. Foi ali, ainda pequena, que Anailde sabia que o seu lugar era no quilombo.

Crescida em uma família numerosa, Anailde aprendeu desde cedo o valor de compartilhar. Lembra-se de um dia em especial, quando sua mãe preparava o almoço para ela e os irmãos. De repente, chegaram três primos, com olhares famintos, pedindo para se juntar à refeição. Anailde sabia que a comida seria pouca para tantos, mas sua mãe, com um sorriso sereno e afetuoso, convidou os meninos a se sentarem à mesa. "Comam vocês", disse ela, "depois eu preparo algo para mim.". No entanto, não houve outra refeição para a mãe, que silenciou sua fome em nome de um gesto maior. Aquela cena gravou-se fundo no coração de Anailde, despertando nela não apenas o desejo de trabalhar para ajudar os pais, mas também uma profunda admiração pela generosidade silenciosa e o acolhimento da mãe. Foi uma lição de amor e desprendimento, daquelas que florescem na alma e acompanham para sempre.

Assim, aos 12 anos, Anailde começou a trabalhar. Fazia de tudo um pouco: ia para a roça, cuidava dos idosos, tomava conta das crianças e, onde houvesse uma oportunidade, lá estava ela, sempre pronta. A cada dia, crescia em seu peito uma determinação firme de superar as barreiras que a vida lhe impunha. Em suas próprias palavras: "Quilombola não desiste". A sua força de superação nascia, sobretudo, das figuras femininas ao seu redor – mulheres fortes que, com mãos firmes e corações generosos, protegiam, cuidavam e sustentavam o quilombo. Eram exemplos vivos de resistência e amor, cujas vidas inspiravam coragem e determinação. Anailde foi assim crescendo e se tornando uma dessas mulheres.

O Quilombo Gruta dos Brejões, situado no município de Morro do Chapéu, na Bahia, é um tesouro de história, cultura e tradição. Seu povo, seus costumes e seus alimentos são expressões vivas da originalidade e da herança ancestral que permeia cada canto desse lugar. Anailde, com orgulho quilombola, nutre um amor profundo por sua terra natal. Nessas terras, ela planta e colhe uma comida viva, que não apenas alimenta o corpo, mas restaura a alma, conduzindo-a a um espaço de paz e serenidade. Anailde não tem o desejo de partir. Seu sonho é permanecer e transformar o quilombo, tornando-o um lugar onde cada criança, jovem, adulto e idoso possam viver em harmonia, livres e seguros em suas próprias raízes.

No Quilombo Gruta dos Brejões encontra-se uma das maiores grutas do Brasil, um lugar que, para Anailde, é muito mais que apenas um cenário deslumbrante — é um espaço impregnado de memórias e emoções profundas. Sua primeira visita à gruta foi aos sete anos, e até hoje ela recorda com admiração a grandiosidade daquele lugar: “este é o lugar do meu sonho”, comentou. Certa vez, aos dez anos, um grupo de turistas chegou para conhecer a gruta, mas não havia nenhum guia disponível para acompanhá-los. Vendo a oportunidade, Anailde, cheia de coragem, se ofereceu para guiá-los. Com um candeeiro em mãos e um entusiasmo contagiante, conduziu o grupo pelo interior da gruta, do início ao fim. O dinheiro que recebeu foi diretamente para ajudar sua mãe em casa, que, entre sorrisos e lágrimas, agradeceu emocionada pelo gesto da filha. Desde então, Anailde continua a guiar visitantes até as grutas, mas o que mais a emociona é levar as crianças do quilombo, para que elas também possam sentir a mesma admiração e respeito por aquele lugar especial.
Anailde sempre se reconheceu como quilombola, algo que pulsava em suas veias desde o nascimento. No entanto, o verdadeiro sentido dessa identidade e a profundidade que ela ocupa em sua alma só se revelaram plenamente em sua juventude. Segundo sua mãe, Anailde sempre teve o "nariz empinado", um traço inicialmente visto como algo negativo, mas que logo revelou sua força interior e determinação em conquistar os espaços que desejava ocupar. Ainda jovem, começou a participar ativamente das reuniões do quilombo, a buscar formas de melhoria e a lutar incansavelmente pelo povo negro.

Em uma ocasião, durante a visita do grupo Floresta Viva ao quilombo, alguém lhe perguntou por que ela usava sempre o pano na cabeça, sendo dona de uma beleza singular. Aquele questionamento marcou Anailde. A partir daquele dia, embora não tenha abandonado o pano, passou a valorizar ainda mais sua imagem, compreendendo que, além de quilombola, era uma mulher linda, forte e guerreira, com orgulho de suas raízes e de si mesma.

A partir de um movimento coletivo da comunidade, nasceu a Associação do Quilombo Gruta dos Brejões. Hoje, Anailde é a presidente dessa organização, e, com a força conjunta do grupo – majoritariamente formado por mulheres – tem promovido transformações significativas na realidade local. As ações da associação são diversas, indo desde a distribuição de alimentos até o apoio às famílias em suas necessidades cotidianas. Sob a liderança de Anailde, a associação se consolidou como um ponto seguro e acolhedor, oferecendo amparo e esperança ao quilombo e às pessoas ao seu redor.

O trabalho de Anailde brota das raízes profundas de sua própria história. Assim como na roça, onde suas mãos plantam e colhem o sustento diário, ela semeia esperança e transformação nas vidas que a cercam. Seja através da educação, da assistência ou da saúde, Anailde floresce como uma liderança popular, comprometida com o bem-estar de sua comunidade. Seu maior sonho não é ver as pessoas partindo, mas que todos tenham acesso a oportunidades que os permitam enraizar-se ainda mais no quilombo, fortalecendo e melhorando, dia após dia, o espaço que chamam de lar. Para Anailde, "sem amor, nada é possível", e é esse amor que a guia e a impulsiona a lutar. Ela sonha com um quilombo cada vez mais vivo, onde cada gesto, cada ação, construa um futuro melhor para todos.

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Créditos
  • Produzido por Agência EDN
  • Texto: Lucas Gregório
  • Fotos: Pedro Paquino e Hérick Almeida
Ficha técnica vídeo
  • Produção: Agência EDN
  • Direção: Camila Vaz
  • Direção de fotografia e câmera: Pedro Paquino
  • Assistente de fotografia: Hérick Almeida
  • Drone: Pedro Paquino
  • Produção: Vitor Dumont, Camila Vaz, Rafael Gomes
  • Produção executiva: Camila Vaz
  • Edição: Pedro Paquino, Jeniffer Estevam
  • Finalização: Camila Vaz, Hérick Almeida, Jeniffer Estevam
  • Acessibilidade: Sâmia Bianchi e Juliana Gonçalves
  • Arte e Motion: Camila Ribeiro e Davi Araújo